Apresentou-se como Jorge, depois se ter levantado pedindo-me desculpa por me estar a interromper a corrida matinal.
Nos raros domingos matinais em que não temos provas, e sempre que a meteorologia o permite, faço uma corrida matinal na companhia do Miguel e do Filipe e das suas trotinetas. Em pouco mais de 1 hora seguimos até ao Parque da Parede onde me mantenho às voltas enquanto eles brincam um pouco nos escorregas, baloiços e afins, seguindo depois até à praia de S. Pedro onde aproveitamos para observar o mar, concluindo o percurso à porta de casa.
Com a manhã de hoje a preencher os pré-requisitos enunciados, pouco passava das 11h quando iniciámos o nosso treino.
Chegados ao Parque, seguimos a rotina habitual. Junto aos baloiços brincavam cerca de uma dezena de crianças, com alguns pais e avós por perto. Mais abaixo, na zona das merendas, um casal de idosos ocupava o tempo envolto na leitura de um jornal e uma revista. Junto ao laguinho dos patos, num banco de jardim situado mesmo em frente à pequena ponte estava sentado Jorge. Com um visual descuidado, que dificultava a já fraca perspicácia que tenho para calcular idades, Jorge preparava com a calma de quem é dono do tempo um pequeno cigarro com tabaco de enrolar.
Depois de várias voltas em que passei à sua frente, entre o banco de jardim e a pequena ponte, Jorge levantou-se e abordou-me pedindo-me imediatamente desculpa por me estar a interromper a corrida e, especialmente, fez questão de se desculpar também pelo facto de o estar a fazer fumando um cigarro. Parei a minha corrida para o ouvir e ele prosseguiu:
- “Desculpe mais uma vez estar a interrompê-lo mas tenho estado a observá-lo na sua corrida com admiração… É que eu também fiz muito desporto e agora, tenho muitos problemas ósseos, artroses nos joelhos e, gostava muito de poder fazer só que já não posso…”
Mantive-me em silêncio sem saber bem o que dizer, retomando ele o seu discurso.
- “… bem, eu não fui propriamente um desportista. Eu fui bailarino profissional da Gulbenkian e como tal fazia muito exercício… Mas agora o meu corpo já não me deixa.”
E com os olhos humedecidos por um lacrimejar saudoso do seu passado continuou.
- “… e não pude deixar de estar aqui a observá-lo no seu exercício com admiração… desculpe tê-lo interrompido mas não queria deixar passar sem lho dizer.”
Despedimo-nos desejando felicidades um ao outro e segui o meu percurso, tentando imaginar que história de vida poderia estar por traz daquela barba e cabelo comprido…
Duas ou três voltas depois passei pela zona dos baloiços e dei sinal aos miúdos para seguirmos. Como habitualmente pediram-me para darem uma passagem pela pequena ponte, o que me levou novamente até junto de Jorge.
Retomámos a conversa…
- “São seus filhos?”
- Sim. Fazemos exercício juntos. Eu corro e eles acompanham-me de trotineta.
- “Que engraçado. Sabe, eu também tenho uma filha. Fui casado sete ou oito vezes, já nem me lembro bem. Tentei influenciá-la a ir para o bailado, mas eu também andava sempre a viajar com as digressões da companhia e não consegui.”
O seu discurso era extremamente cuidado e a construção frásica era de uma riqueza que sustentava que por trás daquela imagem se escondia um passado culturalmente evoluído.
- “O Nuno está ligado ao desporto? É um atleta?”
- Sou professor de Esgrima.
E, como que por ironia do destino…
-“Esgrima? Curioso. Sabe Nuno, eu também fiz esgrima em tempos. Estava a preparar o bailado Romeu e Julieta no Teatro de S. Carlos. Eu fazia de Teobaldo, primo de Julieta e tinha um duelo mesmo à boca de cena. Para aprender estive no Ginásio Clube Português a fazer esgrima…”
Perguntei-lhe se se lembrava do Mestre que o ensinou falando-lhe no Mestre Vinha mas a memória não lhe avivava o nome de quem o havia ensinado. E prosseguiu, contando-me uma história de uma das representações…
-“Um dia, com o Teatro de S. Carlos cheio… e o Nuno sabe que na altura um espectáculo no S. Carlos era uma coisa com pompa e circunstância… estava eu e o meu opositor no início do duelo e o florete, já não me lembro se o meu se o do outro, partiu-se, tendo a lâmina partida ido parar ao fosso da orquestra. Ficámos muito atrapalhados mas tínhamos que continuar e, como sabe, o duelo era coreografado, pelo que tivemos que seguir mas sem tocar um no outro pois a lâmina estava partida…”
As palavras escorriam-lhe com um entusiasmo e, simultaneamente, uma calma nostálgica às quais se tinha juntado novamente a humidade ocular.
-“ Já viu Nuno, como é engraçado que duas pessoas que nunca se cruzaram, em poucas palavras encontraram algo comum no seu percurso?”
E lá estava a Esgrima… Mais uma vez a Esgrima… desta vez, sentada num banco de jardim.
PS – segui o percurso de corrida e trotineta, respondendo às curiosidades do Filipe e do Miguel sobre a conversa que estava a ter com aquele senhor, aproveitando para lhes reforçar a diferença que existia entre a “tristeza” de Jorge, saudoso do que tinha feito e já não podia fazer, em oposição à “tristeza” de muita gente que, lá mais para a frente no percurso das suas vidas, se lamenta daquilo que gostava de ter feito e que nunca fez ou tentou fazer.
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Mto obrigado!