Memórias de Tallin Versão para impressão
Diário do Nuno
Escrito por Nuno Frazão   
Domingo, 06 Março 2011 23:10

Ainda em rescaldo das emoções vividas à distância, de mais uma Taça do Mundo de Tallin, vieram-me à memória algumas histórias da minha passagem por esta  cidade do Leste que sempre me fascinou.

Fui pela primeira vez a Tallin algures por mil novecentos e noventa e tal. Os tempos eram outros e a entrada na capital Estoniana carecia de um visto no passaporte daqueles de página inteira com selo, fotografia e tudo.

Viajávamos habitualmente na companhia do Mestre Horvath como treinador e do Sr. Amado Fernandes como dirigente mas, nesta primeira deslocação a Tallin, acompanhou-nos também o Coronel Valarinho, Presidente da FPE na altura.

Já passava das 22h00 quando chegámos ao aeroporto de Tallin, depois de uma longa viagem com escala de cerca de 2h em Londres e mais 7h em Estocolmo. Não tínhamos visto no passaporte, ninguém no aeroporto falava inglês ou francês e rapidamente ficámos sozinhos a tentar solucionar o problema. Compreendemos que tínhamos de tirar fotografias numa máquina daquelas de moedas, sem as quais não havia visto para ninguém. Já não me lembro como mas conseguimos duas moedas para a máquina mas… éramos 6.

Recorrendo ao instinto e criatividade “Tuga” verificámos que a máquina (uma daquelas cabines de fotos com uma pequena cortina na porta) tirava 4 fotos, todas separadas por um disparo individual. Conscientes que apenas podíamos falhar 2, pois éramos 6 treinámos uma sequência de entra e sai rápido para que cada “flachada” apanhasse um de nós e assim conseguiríamos 4 fotos diferentes numa mesma moeda. A estratégia funcionou quase na perfeição pois, na primeira série de fotos, ficámos com uma do Sr. Amado ainda de lado a entrar e com a cortina a tapar uma parte da cara. Após um momento de gargalhadas à saída das fotos quentinhas arrancámos para a segunda leva. O Sr. Amado repetiu assim na abertura das fotos da segunda moeda e… lá conseguimos os vistos.

No pavilhão da prova encontrámos outro fenómeno deste Mundo da Esgrima. Era já fim da tarde na véspera da prova (noite cerrada em mês de inverno) e, numa salinha no topo da bancada, um “velhote” cuidava sozinho do controlo de material, munido de uma engenhoca que nunca vi em nenhum local senão ali. Com uns bocados de papel de prata ligados a uma pilha e a um dispositivo sonoro a forrar a zona de colocação da coqui na caixa de verificação das dimensões da Arma, lá ia mandando para trás as espadas de quase toda a gente dizendo que não estavam regulamentares uma vez que, fruto do ângulo entre a lâmina e a coqui, esta encostava na prata que por sua vez ligava o dispositivo sonoro.

Todos argumentavam com o “velhote” que, indiferente e num russo fluente, lá ia justificando a sua decisão, obrigando toda a gente a desmontar as espadas para lhes mudar a inclinação de saída da lâmina até que conseguissem passar pela caixa de controlo sem dar sinal na buzina.

A prova correu-me bastante bem, conseguindo chegar ao quadro 32 onde fui afastado pelo meu amigo Mauricio Randazzo que defendia as cores Italianas, resultado que voltei a repetir no ano seguinte, desta feita perdendo para o Sueco Peter Vanky.

Mas Tallin não trouxe só histórias engraçadas e resultados agradáveis. À terceira passagem pela Estónia coube-me pertencer aos 16 isentos, o que, para primeira vez, me dava um certo gostinho especial.

Com entrada directa no quadro principal de 64, coube-me em sorte o Finlandês Kivecas. Kivecas não pertencia à Selecção da Finlândia, muito pelo contrário. Loiro, não muito alto, com uma barbicha invulgar, Kivecas tinha na bancada dois apoiantes entusiastas que seriam, ou seus avós, ou mesmo seus pais. O seu entusiasmo e dos seus ascendentes a par do seu nível esgrimistico eram suficientes para compreender que estava perante um praticante de lazer que tinha aproveitado a proximidade geográfica para realizar uma prova internacional.

Pois foi Kivecas (e olhem que não sei se me lembro de mais algum nome Finlandês dos muitos com que joguei) que em pouco mais de período e meio me distribuiu 15 toques tendo apenas recebido 8 em troca naquela que foi a primeira das poucas vezes em que estive nos 16 isentos de uma Taça do Mundo.

(Abro aqui uns parêntesis para mostrar como o Mundo dá muitas voltas. Quando a minha memória já tinha apagado este episódio eis que volto a encontrar Kivecas. Em 2007, desloco-me a Helsínquia acompanhando os juniores na Taça do Mundo e… ali estava ele. O mesmo sorriso, o mesmo cabelo, a inesquecível barbicha e, desta vez percebo que está ligado à organização. Assim que o vejo, aproveitando que tínhamos chegado cedo ao pavilhão, aproveito para contar esta história à rapaziada. Riram-se todos um bom bocado à minha conta como não podia deixar de ser e seguiram para o controlo de material. Passado pouco tempo o Pequito voltou dizendo que a máscara não tinha passado e que lhe tinham ficado com ela só entregando no final da prova. Dei-lhe a minha e… fui tratar de arranjar quem me emprestasse uma. Depois de várias tentativas não havia outra alternativa e lá recorri ao Sr. Kivecas na esperança que me reconhecesse, o que não aconteceu, mas que gentilmente me emprestou a sua máscara. Quem sabe se não foi por trás daquela máscara com que dei as lições de aquecimento que uns anos antes o Kivecas assistiu aos 15 toques que me deu).

As finais em Tallin passavam-se no Teatro da Cidade. Uma sala de espectáculos clássica bem ao estilo Soviético com um ambiente muito particular onde um dia conseguimos uma foto do Sr. Amado “passando pelas brasas” sobre a qual muitas vezes brincámos ao longo das muitas viagens que fizemos juntos.

Provavelmente este texto não vos diz muito e, mesmo as histórias, para quem não as viveu, não são assim nada de extraordinário. Mas elas fazem parte de um percurso. Neste caso o meu e seguramente, junto com muitas outras,  influenciaram o meu crescimento. Ao transmiti-las espero despertá-los para… as vossas histórias. As histórias do vosso percurso.

Por vezes não reparamos nelas, mas mais tarde, em diferentes contextos, vamos recordá-las e às pessoas que nelas estiveram envolvidas e, aí, vamos realmente perceber que, o desporto (e neste caso a Esgrima) nos dá muito mais do que aquilo que normalmente reclamamos.

É verdade que não podemos fazer esgrima profissionalmente (não se recebe o suficiente e nos poucos momentos em que se pode receber é sem segurança de o manter), que muitas vezes nos faltam os apoios para conseguirmos lutar pelos nossos Sonhos, etc., etc., etc., mas, experiencias como estas… não têm preço.

Tallin?... Um dia vou lá voltar.